As carpideiras e a internet

Muito provavelmente as novas gerações nunca ouviram o termo carpideira. Se arriscarem um palpite, dirão que tem relação com roça, com jardim, com alguém que executa a tarefa de carpir o mato. Na verdade, a palavra expressa uma profissão sui generis: chorar pelos mortos. Sim, é uma profissão milenar, cuja presença até a Bíblia registra. Sendo tradição tão antiga, e de origem oriental, provavelmente, não é de espantar que ela ainda exista na querida Índia.577_M_fee7c9f27.jpg

Quando se vive em outro país, com cultura tão diferente da ocidental, tudo é curioso e marca a memória. Foi o caso do enterro assistido em Divar, Goa. O falecido era um ilustre pai de família, já próximo dos 70 anos, com os filhos criados e bem instalados, excetuado o mais jovem, cujo matrimônio estava marcado para exatamente cinco dias após o falecimento do pai. Pode-se imaginar o trauma. No entanto, todas as formalidades que fazem parte dos ritos funerários foram minuciosamente seguidas.

O falecido pertencia a uma família descendente dos portugueses, já miscigenada com o elemento nativo. Por este motivo, sua reputação era elevada; pertencia à casta dos Brâmanes. Morava em um dos lugares mais bonitos de Goa: a ilha de Divar. Este aprazibilíssimo local bem pode ser descrito como uma pequena reprodução de uma cidadezinha qualquer de Portugal. O estilo das casas, as igrejas, dentro delas os santos, os altares, a arquitetura barroca colonial, tudo lembra o pitoresco país luso.

Em uma larga avenida de terra, ladeada por casarões antigos, situava-se a casa do falecido. Certamente, em tempos idos, a casa fora bela e vistosa. Agora estava com as cores desbotadas, o madeiramento do telhado carunchado, e até as talvez seculares mangueiras do quintal mostravam as enormes raízes expostas, como que atestando os múltiplos esforços que o vegetal tinha feito ao longo de tantos anos.

Na sala estava montado o féretro: as paredes e janelas cobertas por tecidos negros, um burburinho respeitoso e a família consternada. Até aqui nada de excepcional. Mas quando o visitante, conduzido por alguém da família, entrava na sala anexa, surpreendia-se com uma mesa fartamente servida. Todos os melhores pratos típicos goeses ali se encontravam. O saboros “calde” verde, o bolo “semrival”, a bebinca, o chouriço goês, chamuças, vistosos chapatis e apas, enfim, tudo o que dava água na boca do convidado e peso na consciência, por estar se deleitando com a vista e o olfato, e, posteriormente, com o paladar, enquanto se velava um defunto na sala.

Mas, como ali é o costume, os visitantes se consolavam da morte alimentando-se bem. É sinal de alta categoria do morto os pratos numerosos e variados, e o visitante deve sentir-se bem recebido até pelo finado.

Ao se aproximar a hora do enterro, à medida que a casa se enchia, iam chegando alguns senhores com uniformes garbosos, carregando instrumentos musicais. Teria o morto pertencido a alguma corporação musical que agora vinha lhe prestar homenagem? Ou seria ele amante da música a ponto de a família querer que se executassem algumas últimas melodias em sua presença? Nada disso. É outro costume antigo conservado em Goa. Todos os enterros, pelo menos de pessoas de boa casta, são acompanhados por banda de música, que já possuem um repertório próprio para essa ocasião: vetustas melodias herdadas dos ancestrais portugueses, melancólicas e arrastadas. E uniformes formais em vermelho e dourado. Assim, para aquele grupo de pessoas, o defunto quase se eleva à categoria de chefe de estado.

O mais extraordinário, porém, foi, ao sair o cortejo fúnebre, a presença de dez a quinze senhoras, vestidas de negro, com os rostos velados, que choravam sentidamente. Seriam ciganas? Não podia ser, porque entre elas se encontrava uma conhecida, embora não fosse nem parente, nem amiga da família. E por quê tanto choro? Um pouco exagerado, já que a frágil saúde do defunto pai de família fazia prever um passamento súbito. Eram as famosas carpideiras, personagens de romances e de contos, mas nunca conhecidas na realidade. Choravam às torrentes, e, talvez pela familiaridade que com a presença delas tinham os participantes, não chegavam a contagiar, mas acrescentavam dramaticidade ao ato. Andavam à frente do féretro, abrindo caminho para a dor e lamentando em altos soluços a visita da morte. Era esse seu papel.

Todo o restante da cerimônia passou-se mais ou menos como no ocidente. Missa de corpo presente, cortejo até o cemitério, discurso à beira da sepultura, últimas despedidas, tudo com o fundo musical da banda e das carpideiras.

1748_M_fca2906c9.jpgEsse episódio ficaria esquecido na memória se não fosse o contraste que suscitou a notícia há pouco veiculada pela Internet de que, nos Estados Unidos, criou-se uma empresa especializada em enterros personalizados. O moribundo, ou o simplesmente enfermo, pode optar pelo tipo de velório e enterro de sua preferência. Pode escolher o tema do velório segundo seu próprio gosto: romântico, roqueiro, esportista, intelectual, formal, light, teens, etc. Também pode escolher o texto do convite e o cardápio do que será servido na ocasião, com ofertas desde champagne até o simples cafezinho. A presença do cadáver na “festa” é opcional. E, o mais surpreendente: uma vez montada a “festa”, ele tem a possibilidade de assistir a ela antecipadamente, é claro, em 3D. A intenção do inovador empresário é “desdramatizar” a morte.

O contraste entre este novo ritual fúnebre e o antigo, presenciado em Goa, é profundo, embora possa parecer apenas uma adequação às novas tecnologias. Sem considerar o mal que faz à alma de quem se despede dessa vida, o fato de preocupar-se com coisas do mundo – quando deveria meditar sobre o valor moral de seus atos e o seu destino eterno -, deve-se ponderar que o modo antigo de despedir um falecido lembra um castigo do qual nenhum homem escapa. A existência de um homem deve ser lembrada e honrada com seriedade por seus familiares e amigos. Além disso, a grandiosidade da pompa funerária faz lembrar que a morte é, sobretudo, uma porta para a eternidade. E até o papel das carpideiras, com seu pranto profissional, se justifica, pois garantem uma nota de drama ao que é realmente dramático, e cuja trivialidade do cotidiano poderia desbotar. O modo cibernético de ver este acontecimento como que “democratiza” todas as crenças e costumes a respeito do momento supremo da vida; o falecido é tratado como alguém que partiu para uma longa viagem, do qual não se devem exaltar ou recriminar a vida e os feitos. Faz-se tábula rasa a respeito de sua conduta e do seu relacionamento humano.

Profunda diferença de mentalidade, de costumes, de civilizações. Em qual delas estaria o homem mais elevado em sua dignidade, em qual teria ele mais respeitados seus direitos humanos, naturais e sobrenaturais? Pensemos.

 

Elizabeth Kiran

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