Lembranças

MeninoLembranças Há certos fatos na vida que marcam profundamente a sensibilidade. No recôndito da alma eles vão sendo maturados até serem explicitados pela razão, que, por sua vez, os submete à vontade, que os aceita ou rejeita.

 Formam eles um cabedal de conhecimento inteiramente exclusivo e pessoal, do qual a pessoa vai se servir ao longo da sua existência como base ou critério para o julgamento das mais diferentes situações. Foi o que ocorreu ao assistir a um funeral em Trivandrum, na Índia. Neste país de imensa maioria não-católica, a comunidade dos filhos da Santa Igreja se destaca de maneira especial por dois aspectos: primeiro, porque consegue ter um convívio e um relacionamento pacífico com os não-cristãos.

E segundo, porque forma, dentro deste convívio harmônico, um contraste com a cultura pagã, fazendo uma espécie de pregação muda das verdades da Fé, apenas por sua conduta. É famosa em Trivandrum a Congregação das Religiosas Carmelitas, dedicada à educação. É uma família de almas de origem francesa, nascida por volta de 1860, e radicada na Índia desde 1870. Estas freiras possuem conventos, universidades e colégios em diversas partes do país, e a dedicação de seus membros é patente. Em aprazíveis e impecáveis construções, as religiosas se dedicam à formação intelectual, moral e religiosa das jovens católicas, pelas quais são muito queridas.

Foram testemunho desta entranhada benquerença e do valor apostólico desta operosa congregação religiosa, os acontecimentos que se deram por ocasião do falecimento de Sister Cathy. Esta jovem irmã, de aproximadamente 30 anos, de origem humilde, exercia a função de bibliotecária no All Saints College, a universidade que a Congregação mantém em Chakai, Trivandrum. Repentinamente foi ela acometida por uma estranha febre, que não cedeu a nenhum medicamento, e que a levou, após três dias, ao encontro com seu celeste Esposo.

A comoção provocada por sua morte em suas irmãs de hábito foi grande. Armou-se o féretro numa das singelas capelas da Congregação, e aí desfilaram, durante uma noite e um dia inteiros, os amigos e parentes da religiosa e de suas irmãs.

Ao final deste dia, o corpo foi transladado para a capela do Colégio dos Santos Anjos; o caixão estava envolto nos longos cordões de jasmim ofertados pelos amigos, cujo perfume recendia com suavidade, numa homenagem eloquente de despedida. Após uma missa solene, celebrada pelo Arcebispo de Trivandrum, o féretro foi transportado ao cemitério católico.

A, até então, anônima esposa de Cristo tivera uma vida laboriosa e recolhida, discreta e submissa, como a milenar cultura indiana preconiza e como a Santa Igreja recomenda para suas filhas. Neste momento, porém, o caixão era carregado pelas outras freiras, quase como um troféu. Os anjos se encarregavam de vestir o céu com nuvens de arrebatadores coloridos.

As cores deslumbrantes dos sarees indianos, aos quais a desprendida religiosa renunciara em vida, serviram, neste momento, para engalanar o firmamento. Não faltaram entusiasmados cânticos, orações e recitação do rosário em todo o longo caminho até o cemitério.

As fisionomias umedecidas pelas lágrimas, tinham, no entanto, a marca de esperança e júbilo cristãos, em que transparecia não apenas a alegria da vitória sobre a morte, da confiança na ressurreição final, mas também o gáudio de quem venera e proclama o cumprimento de uma vocação. Se estas dedicadas religiosas tivessem oferecido à população cursos e palestras, tivessem feito missões, promovido retiros, e tantas outras ações de caráter pastoral, ainda assim não teriam pregado tanto quanto o fizeram ao realizar o funeral desta irmã. Ficava ali evidente a dignidade da esposa de Cristo.

Era um funeral de rainha. Aí, sim, o contraste com a cultura pagã se fazia por inteiro. Aquela que, na sociedade temporal, teria que suportar a carga dos costumes milenares que sobrecarregam a mulher na querida Índia, pela renúncia a si mesma e aos bens do mundo, agora era apresentada como a grande vencedora. E um dos aspectos que acrescentava singular beleza ao tocante episódio era a despretensão com que todas agiam.

Dar-se-iam conta da grandiosidade da vocação religiosa e do testemunho católico que viviam? Este acontecimento, gravado na sensibilidade de quem o presenciou, conduz à reflexão de que para a mulher ter uma existência verdadeiramente digna nesta terra não são necessários dotes extraordinários, físicos ou intelectuais, fortuna, fama, nem mesmo prole numerosa e bem sucedida.

A grande dignidade, a régia distinção foi dada à humilde Sister Cathy, esposa do Rei dos Reis e religiosa quase anônima durante a vida. A grande honra que recebia na morte era o reconhecimento cheio de afeto e respeito que todos os que a conheceram lhe prestavam neste momento. Certamente, esta lição de vida sobrenatural a souberam tirar os intuitivos indianos, que entre maravilhados e compungidos acompanharam a derradeira despedida da pequena Sister. Elizabeth Kiran

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