O primeiro Santo brasileiro

O varão que teve
sua alma nas mãos

Sereno e dadivoso, sempre voltado para o bem dos outros, Frei Antônio de Sant’Ana Galvão
é posto pelo Papa Bento XVI como modelo para os cristãos brasileiros.

Carmela Werner Ferreira

Os corações brasileiros têm, com a visita do Papa Bento XVI, inúmeros motivos de alegria. Quiçá um dos que toquem mais especialmente a piedade da maior nação católica do mundo seja a canonização do primeiro santo nascido na Terra de Santa Cruz: Frei Antônio de Sant’Ana Galvão.

Esta alma puríssima como um cristal não fez senão irradiar ao longo de toda a sua vida o suave “odor de Cristo” num período conturbado para a Igreja no Brasil, mas no qual uma população ávida de santidade soube ver nele o bom pastor que o Céu lhe enviara.

Dadivoso e voltado para as almas

Em pequeno, foi uma criança admirável. Nascido no seio de uma família numerosa e exemplarmente católica, ele destacava-se como o filho predileto. Sua nobreza de origem deu-lhe um coração generoso, desde o começo, e se comprazia em distribuir esmolas aos que batiam à porta de casa. Conta-se do período de sua infância que um dia, estando sozinho, veio uma pobre senhora pedir ajuda. Sem ter nada que lhe dar, não pensou duas vezes: dispôs de uma riquíssima toalha de crivo posta sobre a mesa e a entregou à mulher. Os tempos eram outros e a senhora percebeu que aquela peça valiosa não fora parar em suas mãos com o consentimento da mãe do menino. Voltou à casa e quis devolvê-la, mas Dona Isabel — a mãe do pequeno Antônio — apenas a confortou: “Meu filho a deu, está bem dada”. Esta dadivosidade ímpar, Frei Galvão a conservou durante toda a sua longa existência.

Ao partir para a Bahia, a fim de iniciar sua formação acadêmica no Colégio Jesuíta, o jovem Antônio não imaginava que a vocação sacerdotal lá se manifestaria. Assimilou com sumo proveito os seis anos de estudos e, ao terminá-los, sentia-se inclinado a trilhar as vias de Santo Inácio. Não foi este, porém, o conselho que lhe deu seu pai. Os ventos não eram favoráveis para os jesuítas e o jovem Antônio poderia fazer muito mais pela glória de Deus gozando a liberdade de atuação dos franciscanos. Calmo e sereno, aquele jovem de 21 anos seguiu a indicação paterna e foi fazer o noviciado na então Capitania do Rio de Janeiro. Avançou rapidamente em virtude e sabedoria e, após os estudos teológicos realizados no Seminário de Santo Antônio do Rio de Janeiro, foi ordenado sacerdote em 1762, quando contava 24 anos.

Com seu retorno a São Paulo, ingressou no histórico Convento de São Francisco, que naqueles anos gozava de seu máximo esplendor. É lá que hoje funciona a igualmente histórica Faculdade de Direito da USP, que desde 1827 vem engendrando grandes personalidades para o Brasil.

Foi a partir de sua atuação como sacerdote e do contato direto com as almas, que todos começaram a dar-se conta do tesouro que possuíam: o humilde frade curava enfermos, penetrava o íntimo das consciências, bilocava-se, operava conversões, etc.

Aconteceu, certa vez, que Frei Galvão partiu muito cedo para a casa de uma família abastada. Enquanto batia à porta, um transeunte o avistou e pensou no seu íntimo: “Tão cedo e já Frei Galvão a adular os ricos…” Ao aproximar-se, chamou-o o santo e disse-lhe: “Meu irmão, não faça juízo temerário do próximo! Eu não vim aqui adular o dono desta casa, mas sim pedir uma esmola para o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição”. Atônito, o homem não pôde mais duvidar de que aquele era, de fato, um varão de Deus!

Fama de santidade

Sobre a fama de santidade de Frei Galvão, fala com ardor e autoridade a Irmã Célia Cadorin, postuladora da sua causa de canonização, em declarações à Revista Arautos do Evangelho. Ela ressalta ser indispensável que a fama de santidade de um candidato aos altares seja evidenciada na vida, na morte e depois da morte. Para este efeito, ela esquadrinhou os arquivos da Prefeitura de São Paulo, do Instituto Histórico, da Cúria provincial dos franciscanos e, sobretudo, do Mosteiro da Luz.

Não faltaram as provas e documentos. “O processo inteiro comportou quase 10 mil páginas, contendo um relato sintético de mais de 8 mil graças alcançadas”, explica Irmã Célia. E, dentre os documentos anexados, cita como exemplo uma ata contemporânea do Santo, da Câmara de São Paulo, na qual se diz: “Este homem é preciosíssimo a toda esta cidade e vila da Capitania de São Paulo. É um homem religiosíssimo e de prudente conselho. Todos acodem a fazer-lhe pedidos. É um homem de paz e caridade”.

Que toda a cidade pensasse assim, ficou provado com o seguinte caso: por Frei Galvão opor-se, juntamente com um monge beneditino, à morte tola de um soldado, o governador resolveu exilá-los para o Rio de Janeiro. O monge beneditino afirmou que não ia, mas Frei Galvão apenas disse: “Eu sou franciscano, sou filho da obediência…” Tomou umas poucas roupas e foi-se. Quando o povo soube, armou-se de paus, varapaus, enxadas e outros utensílios de lavoura e cercou a casa do governador. Assustado, este mandou logo mensageiros ao encalço do frade, que já se encontrava longe. E ele voltou, para gáudio de todos!

O Mosteiro de Nossa Senhora da Luz

Mas, se quisermos citar a maior obra de sua vida, que marcaria para sempre a grande cidade de São Paulo, devemos falar do Mosteiro de Nossa Senhora da Luz. De tal maneira Frei Galvão ligou sua existência ao novo mosteiro, que não podemos mencionar essa instituição sem que o seu nome nos venha logo à memória; bem como não podemos nos referir ao santo religioso sem nos lembrarmos desse convento.

Frei Galvão recebeu, no início de suas incumbências sacerdotais, três encargos: o de pregador da ordem franciscana, o de porteiro — que o tornou muito conhecido — e o de confessor do Recolhimento de Santa Teresa, onde viviam algumas monjas. Era o único estabelecimento de religiosas então existente em São Paulo. Chamava-se “recolhimento” porque naqueles tempos de perseguição religiosa o termo “mosteiro” era imprudente perante o governador. Nessa singela comunidade que Frei Galvão passou a dirigir, vivia uma alma eleita: Irmã Helena Maria do Sacramento. A essa devota freira foi revelado ser desejo de Deus que Frei Antônio de Sant’Ana Galvão fundasse um novo convento na cidade de São Paulo. Caso perigoso e delicado! Por um lado, havia proibição formal da parte do Marquês de Pombal de receber noviços em qualquer instituição, sob pena de morte; e por outro, a natureza daquela revelação seria posta à prova por muitos. O próprio Santo refletiu longamente, consultou os canonistas e, sobretudo, analisou aquela alma. Sua conclusão foi: é de fato um desejo inspirado, fundemos o novo convento.

Escolheu-se o Campo da Luz, onde havia já uma antiga capelinha dedicada a Nossa Senhora da Luz, numa região totalmente despovoada e não distante do rio Anhembi. Começou, a partir daí, um calvário de dissabores e provações que para o Santo se traduziam em provas visíveis de ser este o desígnio de Deus. A pequena comunidade que ali passou a viver em instalações provisórias sofreu de tudo: o mandado de que fosse extinto o Recolhimento, a fome e a miséria que quase as levaram à morte, a privação da assistência de Frei Galvão até passar a tormenta… Mas o Senhor queria “construir a casa sobre a rocha” e, na raiz dessa heróica fundação, era necessário o sofrimento de todos.

Por fim, depois de obtidas as devidas licenças, Frei Galvão iniciou a construção do belo mosteiro que se mantém em suas linhas gerais tal qual o vemos hoje.

O filho do Capitão-Mor de Guaratinguetá tornou-se mendigo pela obra de Deus. Angariou fundos e operários para a construção, fez longas e penosas viagens — sempre a pé —, divulgando e mobilizando a população a contribuir para causa tão nobre. As doações chegavam, mas não bastavam… Em uma palavra, ele próprio foi a pedra angular dessa casa de Maria Santíssima e de seu Divino Filho, chegando a trabalhar pessoalmente naquele rude ofício. Mas… que consolação! De seu sofrimento brotaram inúmeras vocações, que não tardaram em apresentar-se, e o Mosteiro de Nossa Senhora da Luz logo ficou conhecido como “um viveiro de santas”, formadas nas luminosas vias indicadas por seu fundador. Quantas graças para a salvação das almas não terão sido obtidas através dos sacrifícios oferecidos por essas virgens consagradas?

As “pílulas” de Frei Galvão

Entre as numerosas graças recebidas pela intercessão de Frei Galvão destacam-se, pela simplicidade e pela maravilhosa confiança na Mãe de Deus que encerram, as pílulas miraculosas. Esse costume tão característico de nosso Santo — ininterruptamente seguido por milhares de ­fiéis desde quando ele era vivo até os dias de hoje — comprova, pelas graças e feitos portentosos que opera, não ser uma mera crença popular. A Irmã Célia Cadorin explica a origem das pílulas.

Diz a história que certo dia apresentaram a Frei Galvão um moço com muitas dores, sem poder expelir uns cálculos renais. O santo religioso, movido de compaixão, depois de rezar teve uma súbita inspiração. Escreveu em três papelinhos a seguinte frase do ofício da Santíssima Virgem Maria: “Post partum Virgo inviolata permansisti: Dei Genitrix intercede pro nobis”, ou seja: “Depois do parto, ó Virgem, permanecestes intacta; Mãe de Deus, intercedei por nós”. Enrolou os papeizinhos em forma de pílula e deu ao jovem para que os tomasse como remédio. Logo depois o moço expeliu um grande cálculo e ficou curado.

Mais tarde um homem aflito procurou Frei Galvão, dizendo que sua esposa, que ia dar à luz, estava muito mal. Novamente ele se lembrou do versículo do ofício de Nossa Senhora; escreveu, enrolou e mandou as pílulas para a mulher. Depois de tomá-las, ela deu à luz sem nenhum problema.

Estes e outros fatos se propagaram rapidamente e os pedidos dos célebres papelinhos, ou pílulas, ficaram muito freqüentes. Frei Galvão ensinou às irmãs do Recolhimento a fazerem pílulas, de modo que, mesmo em sua ausência, as pudessem dar às pessoas que viessem pedir na portaria do Convento.

No início as pílulas eram procuradas sobretudo pelas parturientes. Com o tempo, porém, começaram a ser usadas por quem sofria de enfermidades diversas, de modo especial problemas renais, cálculos ou pedras nos rins. E até para a conversão de pecadores. Hoje em dia são solicitadas por homens, mulheres e jovens que nas doenças — principalmente câncer — ou em dificuldades de toda espécie, invocam a intercessão do servo de Deus e as tomam com fé.

Animam suam in manibus suis semper tenens

A morte colheu Frei Galvão na mesma serenidade que conservou durante a vida e seus últimos dias foram uma expressão fiel do altíssimo grau de santidade que ele havia atingido. Entregou sua alma a Deus no dia 23 de dezembro de 1822, quando contava 84 anos, numa pobre cela atrás da capela do mosteiro por ele construído.

Se quisermos definir a vida deste perfeito filho de São Francisco, não encontraremos melhores palavras que aquelas figuradas em seu epitáfio no Mosteiro de Nossa Senhora da Luz: “Animam suam in manibus suis semper tenens”. Sempre teve a sua alma nas mãos. Com efeito, depois do pecado cometido por nossos primeiros pais, o gênero humano perdeu aquela completa harmonia de todas as suas inclinações, que era o dom de integridade. Reduzidos à dura prova de lutar contra si mesmos mais do que contra qualquer adversidade de sua existência, os homens passaram a depender em maior grau da graça divina do que de suas próprias forças, porque já não encontravam em sua natureza o antigo estado de perfeição. É precisamente nessa docilidade à vontade da Providência em detrimento da sua própria que brilhou a santidade de Frei Galvão: flexível ao sopro do Espírito Santo, esqueceu-se por completo de si mesmo e sepultou as suas deliberações no Coração do Divino Mestre.

Daí lhe veio a incomum virtude da fortaleza à qual ninguém resistia: era amado pelo povo, respeitado pelas autoridades, obedecido pelas religiosas, procurado pelas crianças. Com quanta razão disse Santo Agostinho: “É necessário que a mente seja mais poderosa que a paixão, e a domine. Quanto mais uma virtude for nobre e sublime, mais ela será forte e invencível. Nenhuma alma viciada pode dominar outra munida de virtudes” (1).

Ao receber a merecida honra dos altares, queira Santo Antônio de Sant’Ana Galvão continuar prodigalizando tantos favores quanto os que já tem obtido para a nação que ele tanto desejou ver firme na fé. Feliz o Brasil por ter tal filho! Feliz a Igreja por ter tal Santo! ²

1) O livre-arbítrio, Paulus, São Paulo, 1995, pp. 48-49

Ninado no regaço da Senhora

 Sant’Ana

 

Frei Antônio de Sant’Ana Galvão nasceu em Guaratinguetá, em 1739. Seu pai era Antônio Galvão de França, natural da cidade de Faro, Portugal, e sua mãe, Dona Izabel Leite de Barros, nascida em Pindamonhangaba, provinha dos primeiros povoadores quinhentistas. Ela foi mãe de onze filhos.

Com 13 anos, Antônio foi enviado para estudar no Seminário mantido pelos jesuítas na Vila da Cachoeira, Bahia, a cerca de 130 quilômetros de Salvador. Não fossem as borrascas que já faiscavam no horizonte, desencadeadas pelo Marquês de Pombal, seu pai tê-lo-ia deixado ser jesuíta. O jovem Antônio acabou por ingressar nos Frades Menores Descalços, que exerciam seu apostolado na região de Taubaté. Com 21 anos de idade entrou no noviciado do Convento de São Boaventura, da vila de Macacu, na Capitania do Rio de Janeiro. Recebeu o hábito no dia 15 de abril de 1760. Segundo o costume da Ordem naquele tempo, abandonou o nome de França, passando a chamar-se Frei Antônio de Sant’Ana Galvão. Escolheu o nome de Sant’Ana em homenagem à padroeira de sua família, que aparecia em lugar de honra, em seu lar, num lindo oratório. Suas três irmãs também tinham o nome de Ana.

Sua mãe, embalando nos braços o filho, teria muitas vezes cantado: “Senhora Sant’Ana, ninai meu filho, vede que lindeza e que maravilha! Este menino não dorme na cama, dorme no regaço da Senhora Sant’Ana”.

O ambiente onde nasceu e viveu seus primeiros anos era profundamente cristão e religioso, com uma forte nota militar, pois, além de seu pai, que era Guarda-Mor de Guaratinguetá, todos os seus irmãos tiveram patentes militares ou exerceram cargos de governança. Só ele trocou a casa abastada e as possibilidades de carreira pelo burel franciscano, e tornou-se agora Santo Antônio de Sant’Ana Galvão, como será lembrado até o fim do mundo, especialmente nas celebrações litúrgicas em sua memória.

Milagre da canonização de

Frei Antônio de Sant’Ana

Galvão

 

Nos anos de 1993 e 1994, Sandra Grossi de Almeida sofreu três abortos espontâneos, devidos a uma má formação do útero que lhe tornava impossível levar a termo qualquer gravidez.

Estando nessa situação, em maio de 1999 concebeu novamente. Apesar de o prognóstico médico ser de provável interrupção da gravidez, no máximo ao quinto mês, a gestação evoluiu normalmente até a trigésima segunda semana. Por tratar-se de um caso de gravíssimo risco, Sandra foi hospitalizada para ter acompanhamento diário mais seguro.

Decidiu-se pelo parto cesáreo, no dia 11 de dezembro, e este decorreu sem nenhuma complicação. A criança nasceu pesando 1 quilo e 995 gramas e medindo 42 centímetros. Devido a problemas respiratórios, precisou ser entubada; teve, porém, um quadro de evolução muito rápida, sendo “extubada” no dia 12, à tarde. Recebeu alta hospitalar no dia 19.

O êxito favorável deste caso raro foi atribuído à intercessão do Beato Antônio de Sant’Ana Galvão. Desde o início, e durante toda a gravidez, ele tinha sido muito invocado pela família e pela própria Sandra que, além de fazer contínuas novenas, tomou as “pílulas de Frei Galvão” com fé e a certeza da ajuda desse “homem da paz e da caridade”.

Os peritos médicos da Congregação para as Causas dos Santos, na sessão de 18 de janeiro de 2006, aprovaram por unanimidade o fato como “cientificamente inexplicável no seu conjunto, segundo os atuais conhecimentos científicos”. E em 13 de julho o “Congresso dos Teólogos” reconheceu o caso como miraculoso.

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